terça-feira, 5 de maio de 2009

Novo modelo de sociedade

17.04.09 - MUNDO
Novo modelo de sociedade


Frei Betto *
Adital -
Ao participar do Fórum Econômico Mundial para a América Latina, a 15 de abril, no Rio, indaguei: diante da atual crise financeira, trata-se de salvar o capitalismo ou a humanidade? A resposta é aparentemente óbvia. Por que o advérbio de modo? Por uma simples razão: não são poucos os que acreditam que fora do capitalismo a humanidade não tem futuro. Mas teve passado?
Em cerca de 200 anos de predominância do capitalismo, o balanço é excelente se considerarmos a qualidade de vida de 20% da população mundial que vivem nos países ricos do hemisfério Norte. E os restantes 80%? Excelente também para bancos e grandes empresas. Porém, como explicar, à luz dos princípios éticos e humanitários mais elementares, estes dados da ONU e da FAO: de 6,5 bilhões de pessoas que habitam hoje o planeta, cerca de 4 bilhões vivem abaixo da linha da pobreza, dos quais 1,3 bilhão abaixo da linha da miséria. E 950 milhões sofrem desnutrição crônica.
Se queremos tirar algum proveito da atual crise financeira, devemos pensar como mudar o rumo da história, e não apenas como salvar empresas, bancos e países insolventes. Devemos ir à raiz dos problemas e avançar o mais rapidamente possível na construção de uma sociedade baseada na satisfação das necessidades sociais, de respeito aos direitos da natureza e de participação popular num contexto de liberdades políticas.
O desafio consiste em construir um novo modelo econômico e social que coloque as finanças a serviço de um novo sistema democrático, fundado na satisfação de todos os direitos humanos: o trabalho decente, a soberania alimentar, o respeito ao meio ambiente, a diversidade cultural, a economia social e solidária, e um novo conceito de riqueza.
A atual crise financeira é sistêmica, de civilização, a exigir novos paradigmas. Se o período medieval teve como paradigma a fé; o moderno, a razão; o pós-moderno não pode cometer o equívoco de erigir o mercado em paradigma. Estamos todos em meio a uma crise que não é apenas financeira, é também alimentar, ambiental, energética, migratória, social e política. Trata-se de uma crise profunda, que põe em xeque a forma de produzir, comercializar e consumir. O modo de ser humano. Uma crise de valores.
Desacelerada a ciranda financeira, inútil os governos tentarem converter o dinheiro do contribuinte em boia de salvação de conglomerados privados insolventes. A crise exige que se encontre uma saída capaz de superar o sistema econômico que agrava a desigualdade social, favorece a xenofobia e o racismo, criminaliza os movimentos sociais e gera violência. Sistema que se empenha em priorizar a apropriação privada dos lucros acima dos direitos humanos universais; a propriedade particular acima do bem comum; e insiste em reduzir as pessoas à condição de consumistas, e não em promovê-las à dignidade de cidadãos.
Há que transformar a ONU, reformada e democratizada, no fórum idôneo para articular as respostas e soluções à atual crise. Urge implementar mecanismos internacionais de controle do movimento de capitais; de regular o livre comércio; de pôr fim à supremacia do dólar e aos paraísos fiscais; e assegurar a estabilidade financeira em âmbito mundial.
Não haveremos de encontrar saída se não nos dermos conta de que novos valores devem ser rigorosamente assumidos, como tornar moralmente inaceitável a pobreza absoluta, em especial na forma de fome e desnutrição. É preciso construir uma cultura política de partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano, e passar da globocolonização à globalização da solidariedade.
As Metas do Milênio e, em especial, os sete objetivos básicos do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, de 1995, devem servir de base a um pacto para uma nova civilização: 1) Escolaridade primária universal; 2) Redução imediata do analfabetismo de adultos em 50%; 3) Atenção primária de saúde para todos; 4) Eliminação da desnutrição grave e redução da moderada em 50%; 5) Serviços de planificação familiar; 6) Água apta para o consumo ao alcance de todos; 7) Créditos a juros baixos para empresas sociais.
A experiência histórica demonstra que a efetivação dessas metas exige transformações estruturais profundas no modelo de sociedade que predomina hoje, de modo a reduzir significativamente as profundas assimetrias entre nações e desigualdades entre pessoas.
[Autor, em parceria com Luis Fernando Veríssimo e outros, de "O desafio ético" (Garamond), entre outros livros].
* Escritor e assessor de movimentos sociais

Fonte: http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=38265&busca=

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

O capitalismo é selvagem? (Ou: Por que celebrar Darwin?) de Maurício Abdalla *

O capitalismo é selvagem? (Ou: Por que celebrar Darwin?)
Maurício Abdalla *

Há uma grande confusão em nossa concepção sobre a natureza. E as coisas tendem a piorar com a exagerada comemoração do bicentenário de Darwin. Muitos acreditam que a ciência descobriu que a “lei da selva” é a lei do mais forte, a lei da competição e da luta pela sobrevivência. Mais ainda, pensam que Darwin descobriu essa lei a partir de rigorosos estudos da natureza. Perdoem-me estragar a festa, mas quero argumentar que tais noções são equivocadas e que não há nenhuma originalidade ou brilhantismo a ser celebrado neste aspecto da compreensão do mundo natural.
Os incomensuráveis avanços na pesquisa científica no último século revelaram que a verdadeira “lei da selva” é a integração holística dos sistemas vivos e que todos os organismos supostamente em competição constituem, na verdade, partes interagentes de um sistema complexo em uma perfeita sintonia que já dura cerca de 4 bilhões de anos.
Quem estuda a ciência de maneira rigorosa e crítica sabe que a estabilidade de uma célula e de organismos multicelulares depende da integração sistêmica de suas partes constituintes. O mesmo acontece com o ecossistema e com o ciclo vital que sustenta o planeta, do qual fazem parte inclusive os minerais. Uma guerra de todos contra todos resultaria exatamente no contrário da estabilidade: a desintegração dos sistemas e a desestruturação da complexidade, sustentáculos do fenômeno a que chamamos vida.
Nem o mais renitente defensor de um mundo desencantado deixa de impressionar-se (e encantar-se!) com a organização extremamente complexa e em fina sintonia de elementos químicos comuns (esses, sim, desencantados, pois a matéria que constitui a vida é a mesma que forma os seres inanimados) que interagem para formar até mesmo o mais simples dos organismos vivos.
A “selva” é, na verdade, um ambiente de equilíbrio e integração, que envolve desde micro-organismos invisíveis, como bactérias e vírus, até grandes mamíferos e plantas. As leis não são escritas e não há sistema penal, mas há uma punição máxima, não deliberada por legisladores, para aqueles que desrespeitam a regra do equilíbrio: a perda de sintonia com o ambiente e, conseqüentemente, a extinção.
O próprio padrão revelado pelos estudos empíricos da evolução (o registro fóssil e a paleogeologia) dá testemunho de que grandes mudanças são episódicas e estão sempre relacionadas a catástrofes e fenômenos não corriqueiros, como a saturação da atmosfera com o oxigênio liberado pelas primeiras bactérias, a queda de um asteróide, mudanças climáticas profundas, etc. O restante da história (a maior parte) é de poucas mudanças estruturais, inúmeras adaptações e centenas de milhares (ou milhões) de anos de equilíbrio e estabilidade. Tal padrão evolutivo foi chamado pelos paleontólogos S. J. Gould e N. Eldredge de “equilíbrio pontuado”.
Se, no entanto, a “lei da selva” é a do equilíbrio e da interação holística das partes componentes, de onde vêm as conotações negativas do termo “selvagem”? Por que o associamos à luta de todos contra todos, à competição e à sobrevivência do mais forte?
Quem acredita que o culpado de tudo isso é Darwin, acertou apenas uma parte. A história da associação das leis da natureza às leis da competição começa alguns séculos antes.
O sistema capitalista teve sua origem no que Marx chamou de “acumulação originária”, caracterizado pelo comércio competitivo, expropriação arbitrária e violenta de pequenas propriedades, escravidão e pilhagem de recursos de continentes invadidos e colonizados. A conclusão do autor de O Capital é de que “Se o dinheiro (...) ‘nasce com manchas naturais de sangue em uma de suas faces’ o capital vem ao mundo jorrando sangue por todos os poros, dos pés à cabeça”. A Inglaterra teve especial destaque na alavanca desse sistema. Não é de se admirar que as teorias relacionadas a esse tipo de atividade predatória tenham surgido exatamente naquele país.
No século XVII, Thomas Hobbes atribuiu a dinâmica da realidade sob o capitalismo em ascensão a uma essência predatória do ser humano e afirmou que o “homem é o lobo do homem” (homo homini lupus) e que a sociedade é uma “guerra de todos contra todos” (bellum omnium contra omnes). A sistematização teórica da cosmovisão capitalista estava com suas bases lançadas. A metafísica social da era moderna estabelecia os fundamentos a partir dos quais toda a realidade seria concebida e justificada.
Adam Smith transportou tal metafísica para a sistematização da teoria econômica liberal. Para ele, o interesse próprio, o egoísmo de cada indivíduo, era o que fazia a sociedade funcionar. A mão invisível do mercado era um conceito como a gravitação newtoniana, que entrava em ação quando corpos individuais se colocassem no campo de ação um do outro.
Ainda na Inglaterra, agora no auge do imperialismo do século XIX, Thomas Malthus defendeu que a vida em sociedade era, essencialmente, uma luta pela sobrevivência, dada a escassez de recursos em relação ao crescimento populacional. Herbert Spencer, em consonância com Malthus, pontificou que os vencedores da luta pela sobrevivência eram aqueles mais aptos, que superavam, por suas qualidades intrínsecas, as raças, classes e indivíduos inferiores e menos competentes.
Luta pela sobrevivência e sobrevivência dos mais aptos são conceitos advindos da teoria social liberal, elaborada no auge do enriquecimento da elite colonialista inglesa e da exploração e empobrecimento das classes e povos julgados inferiores. O que fez Darwin, a quem se atribui equivocadamente a autoria destas idéias supondo que ele as teria descoberto no estudo da natureza?
Se as pessoas que celebram o bicentenário de Darwin (principalmente os biólogos) se dessem ao trabalho de ler Sobre a origem das espécies por meio da seleção natural ou a sobrevivência das raças favorecidas na luta pela existência (título original da mais famosa obra de Darwin) – leitura extremamente rara entre os que estudam ou ensinam o darwinismo – veriam que o autor dá o crédito a seus mestres e diz que sua idéia “é a idéia do sr. Malthus aplicada à totalidade dos reinos animal e vegetal” (ver introdução e cap. 3 de A origem das espécies). Spencer é citado cinco vezes na tão celebrada e pouco estudada obra.
Que brilhantismo e originalidade existem em tomar uma idéia social e aplicá-la à natureza? Certamente o brilhantismo de concluir a construção da metafísica social liberal, transformando-a em regras naturalistas. Portanto, não foram as idéias de Darwin que deram margem à sua aplicação social (no que chamam de darwinismo social): ela própria é uma teoria social transportada para a natureza. Além de dar o toque final à metafísica social capitalista, o darwinismo sacramentou a naturalização das idéias liberais hegemônicas.
A partir daí, nossas mentes foram treinadas a ver a competição do leão (predador) com as zebras ou gnus (presas), mas não para se atentar para o fato de que ambos, predador e presa, convivem a milhões de anos em um mesmo espaço, em situação de equilíbrio harmônico, sem consequências ecológicas negativas. Aceitamos idéias como “egoísmo” de genes, sem nos perguntarmos como diabos tal sentimento humano pode ser propriedade de um pedaço de matéria que sequer está viva – os genes são apenas moléculas que só possuem função em uma célula e em interação com outras centenas de moléculas.
Da mesma forma, apesar de ser praticamente um consenso de que a partilha de alimentos e a cooperação foram fatores indispensáveis para a evolução do Homo sapiens, ainda há estudiosos sérios que consideram a cooperação entre humanos não aparentados um dos “maiores enigmas da biologia”, dado que foram doutrinados a buscar competição e egoísmo em todos os fenômenos naturais. Não são raras as explicações de atos altruístas de animais sociais baseadas na relação custo-benefício que tornaria a cooperação uma estratégia interesseira para se obter vantagens individuais.
Ou seja, o que deveria ser um dado empírico gerador de interpretação teórica – a saber, a existência da cooperação em larga escala na natureza – torna-se um “enigma” por contradizer uma doutrina pré-concebida.
Em síntese, a tão falada “lei da selva” a que comumente se refere não foi descoberta na natureza e sim decretada por teóricos do capitalismo e imposta à natureza. Não foi por acaso o sucesso editorial do livro de Darwin na Inglaterra vitoriana, fato inédito até hoje quando se trata de alguma publicação científica.
Como disse acima, o que as pesquisas mais recentes nos têm levado a descobrir na natureza são leis bem diferentes das que regem a dinâmica da sociedade capitalista. Entretanto, explodem por todas as partes as celebrações do nascimento de um pensador que “revolucionou” nossa visão da natureza. Mas o que há de revolucionário em Darwin?
Primeiro é preciso lembrar que o próprio predomínio do capitalismo foi fruto de verdadeiras revoluções na Inglaterra e na França. A burguesia já foi uma classe revolucionária, sob o aspecto material e espiritual. No século XIX, as idéias burguesas ainda eram revolucionárias em certos aspectos, principalmente no moral, uma vez que disputava hegemonia com o conservadorismo clerical. Não é por acaso que o termo “liberal” era oposto a “conservador”. Vivemos, porém, no século XXI, e não é preciso argumentar muito para afirmar que o termo liberal adquire hoje uma conotação conservadora.
Se ser darwinista pôde um dia ser considerado ser progressista, temos motivos de sobra para acreditarmos que nos tempos atuais tal postura está mais para o conservadorismo do que para uma atitude revolucionária. Tanto sob o aspecto científico como social, o darwinismo dá mostras de inadequação ao campo que pretende ser aplicado.
No primeiro aspecto, cito as palavras da conceituada bióloga Lynn Margulis, para quem “No lugar dos formalismos idealizados da ‘moderna síntese’ darwinista, os princípios organizados para o entendimento da vida requerem um novo conhecimento de química e metabolismo. Descobertas no interior do funcionamento das células clarificaram o modo de evolução desde que Darwin e seus seguidores imediatos escreveram suas análises. Os resultados da nova ciência de laboratório e de campo contradizem, ignoram ou marginalizam o formalismo do neodarwinismo, exceto para variações dentro de populações de mamíferos e outros organismos que se reproduzem sexualmente” (Margulis e Sagan. Acquiring genomes: a theory of the origins of species. New York: Basic Books, 2002).
Outro biólogo, Máximo Sandín, afirma que “enquanto nas universidades se ensina a evolução como “uma mudança gradual nas freqüências gênicas”, nos seus próprios laboratórios se observa que os processos implicados na evolução morfológica nos dizem exatamente o contrário” (Sandín, M. Pensando la evolución, pensando la vida. Murcia: Crimentales, 2007).
Sob o aspecto social, é muito pouco provável que uma idéia verdadeiramente revolucionária teria tanto destaque nos grandes meios de comunicação e seria tão propagada e defendida pelas mega-corporações editoriais e midiáticas. É mais sensato supor que a propaganda massiva do darwinismo responde a interesses de manutenção da naturalização das diferenças sociais e das idéias sociais liberais. Além disso, a emergência de uma nova metafísica social que supere a metafísica capitalista não apenas faz-se urgente e necessária como já se configura de forma latente nas inúmeras experiências alternativas de organização social e no clamor dos que anseiam por um outro mundo possível. Para a formação desta nova racionalidade, urge desnaturalizar os elementos da racionalidade burguesa e isso não é possível sem uma abordagem crítica do darwinismo.
À luz da reflexão precedente, o capitalismo não é selvagem. É, ao contrário, o oposto do que ocorre na natureza, uma violação da regra básica do equilíbrio, integração e cooperação que vige no mundo natural. Não é surpreendente que a manutenção desse sistema esteja nos conduzindo à pena máxima aplicada aos que não seguem a verdadeira lei da selva: a extinção.
Levando em consideração o fato de que evolucionismo e naturalismo não são e nunca foram sinônimos de darwinismo (infelizmente não poderei explorar esse aspecto aqui, mas sugiro a leitura de meu artigo La crisis latente del darwinismo, Asclepio. Ano LVIII, n.1. enero/junio, 2006, disponível em www.iieh.com/Evolucion/pdf/La_crisis_latente_del_darwinismo.pdf), ouso dizer, na contramão da maioria, que não vejo motivo para tanta celebração de um nascimento. Preferiria celebrar o funeral da teoria darwinista e o nascimento de uma nova teoria da evolução, estritamente naturalista (não criacionista), verdadeiramente científica e adequada tanto às pesquisas empíricas quanto a uma nova metafísica social.

* Professor de filosofia das ciências da Universidade Federal do Espírito Santo, autor de O princípio da cooperação (Paulus) e Iara e a Arca da Filosofia (Mercuryo Jovem), entre outros.