Fonte: http://brasildebate.com.br/brexit-mais-do-que-nunca-uma-ilha/ acesso em 27/06/2016 às 08:05h
Marcelo Manzano
24/06/2016 16:17
Brexit: Mais do que nunca, uma ilha
Impossível dizer para onde caminhará a Europa e o mundo, depois da saída do Reino Unido da União Europeia. A possibilidade de se estar presenciando o estopim de um aprofundamento do desarranjo mundial que se estende desde 2008 é grande.
Quem poderia imaginar que justamente da terra de Adam Smith e
David Ricardo, berço do liberalismo econômico, viria o mais
potente petardo contra o projeto de integração europeu? Mais do
que isso, que os argumentos racionais e até certo ponto generosos
dos clássicos da economia seriam suplantados pela retórica
medíocre e oportunista de dois populistas de direita, duas figuras
caricatas que parecem ter brotado entre os cogumelos nos jardins da
rainha.
Ao que tudo indica – e as bolsas assim já precificam – a
decisão tomada pelo povo britânico no dia 23, a favor do Brexit,
ameaça desordenar o tabuleiro mundial e principalmente europeu com
grande letalidade.
De cara, o mapa do resultado eleitoral da ilha revela um futuro
sombrio e de inevitável desmantelamento do reino bretão. A começar
pela impressionante unanimidade entre os eleitores da Escócia, onde
nada menos que 100% dos distritos registraram maioria contrária ao
rompimento com o bloco europeu.
Em contrapartida, no País de Gales e nas infinitas e bucólicas
cidades do interior, o voto a favor da saída foi massivo, revelando
que o eleitorado de mais idade, de renda média, com menor
escolaridade e mais tradicionalmente “British” aposta
no rompimento com a Europa como atalho para retomar a glória da
Inglaterra vitoriana (silly boys!).
Já nas grandes e antigas cidades do cinturão operário do Norte
(Liverpool, Manchester e Leeds), que pariram a Revolução
Industrial e deram origem aos movimentos operários, prevaleceu o
voto contrário ao Brexit, embora nas também importantes e
ex-industriais Sheffield e Birmingham o mesmo não tenha ocorrido –
o que é uma vergonha.
Londres, claro, cosmopolita e financista como nenhum outro rincão
do planeta, votou majoritariamente pela continuidade da aliança com
o continente – pesou também nessa tendência dos londrinos o
grande número de jovens, universitários e imigrantes que se
concentram na cidade e que enxergam na integração um horizonte
mais vasto para seus projetos de vida.
Noves fora, o quadro de discórdia explicitado pelo referendo
deverá ser sucedido por processos de cisões internas e externas de
toda ordem. Não só os escoceses já anunciaram que querem um novo
referendo para decidir o rompimento com o Reino (e aposto todas as
fichas que sairão), como também os galeses, irlandeses do norte e
até mesmo os ingleses do North(vermelho) deverão dar
corda a movimentos separatistas que encontrarão cada vez mais
motivos para romper os nexos com a asfixiante da City londrina.
É um vexame! Parece que os ilustrados da velha ilha meteram o
sorvete no nariz e agora será difícil evitar o esfacelamento do
que restava de vigor trabalhista e mesmo de uma direita conservadora
mais responsável. Perdidos em infindáveis debates principistas
sobre qual seria o melhor esteio da democracia (a tecnocracia do
parlamento europeu ou a tradição secular do britânico) e reféns
do oportunismo de curto prazo de Mr. Cameron (moleque que prometeu o
referendo para vencer a eleição com o apoio dos xenófobos) as
tradicionais forças políticas britânicas foram atropeladas por
uma cambada de “homens médios”.
Sob a liderança do quase patológico Nigel Farage (líder do
Ukip e inventor do Brexit) e do idiossincrático Boris Johnson
(ex-prefeito de Londres, do Partido Conservador, que faz um tipo
“família Adams”, mas que é esperto como um Eduardo Cunha sem
contas na Suíça), os britânicos deverão assistir em breve o
cenário político degenerar ainda mais.
Sem os votos progressistas dos escoceses e com o Labour
Party em profunda crise de identidade, restará aos
britânicos referendar a aliança entre o tinhoso e provável
próximo Primeiro Ministro, Mr. Boris Johnson, e o infame Farage –
a dupla terá que lidar com um dos momentos políticos mais
turbulentos da vida britânica nas últimas décadas e certamente
fará história.
Obviamente, essa maré de água azeda deverá cruzar o Canal da
Mancha e disseminar as razões dos eurocéticos pelas terras do
continente. Holanda, Dinamarca e República Tcheca já estão
preparando seus plebiscitos – com o agravante de que nestes casos
o rompimento deverá ser também com a moeda comum, o que coloca
sérias dúvidas quanto à sobrevivência do Euro.
Impossível dizer para onde caminhará a Europa e o mundo. A
possibilidade de se estar presenciando o estopim de um
aprofundamento do desarranjo mundial que se estende desde 2008 é
grande. Lamentavelmente, mais do que nunca, a frase do conservador
Ortega y Gasset, escrita para o contexto europeu de 1927, parece
fazer irritante sentido ainda em nosso tempo e lugar: “a
característica do momento é que a alma vulgar, sabendo que é
vulgar, tem a coragem de afirmar o direito da vulgaridade e o impõe
a toda parte”.
Crédito da foto da página inicial: Hannah
Mckay/EPA/Agência Lusa
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